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2LAUDAS

PRÓLOGOS & EPÍLOGOS

IMAGEM: ©️broxadomariaelizabeth

Por Danielle Lucy Bósio Frederico Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)


A vida é cheia de curvas, escadas, retas e rampas. Nada é retilíneo ou com destino já previamente acertado. Somos seres informes, que durante a caminhada da vida vamos nos construindo e desconstruindo, desfazendo-se e refazendo-se, vivendo e morrendo... A vida vai acontecendo (como diz um querido amigo).

Ela é dinâmica e não para, e por vezes esse dinamismo pode ser tão frenético que nos perdemos e nos sentimos vazios, olhamos para os lados e observamos tantos caminhos e opções que nos vemos sem opções e caminhos. Louco isso né? (expressão usada por outra amiga).

Louco, insano, real e presente demais! O que fazer? Respirar!!! Ao respirarmos, um momento é tomado para sentir a vida entrar em nós. A vida que nos é dada gratuitamente, que é presente, que é passado, que é história contada, história sendo contada e história a se contar...

Ao me deparar com essa foto, no rolar das postagens no Instragram, me detive nos seus encantos. Na sua beleza e suavidade, pensei na força dos materiais no período da construção, no que pode ser sido pensado/planejado e o que de fato foi executado; nas cores escolhidas, em sua utilidade, no tempo de existência, no pisar dos passos sobre ela, na perspectiva da fotógrafa ao captar e optar por essa luz/ângulo, e tantas outras coisas. Assim é a vida, não é? Cheia de nuances, cores, suavidades e agressividades, tempos, falta de tempo, ociosidade...

Lembrei-me das aulas na pós-graduação: a vida não é hermética, não é quadradinha, ela é construída e vivida em meio a várias semiosferas, pois é polissêmica por essência!

Ela é mudança constante, mas por vezes também é marasmo e repetições sem fim! Ela é tudo e pode ser nada. Ela é vida, mas também pode ser morte. Ela pode ser linda e horrível, pois os contrários e opostos constituem a loucura que nos atrai... Louco isso, né? (me lembro novamente daquela minha amiga...).

Louco, insano, maravilhoso, belo, perfeito e imperfeito... vida! Sem pontos finais, mas com várias vírgulas, ponto e vírgulas, dois pontos, refrões e silêncios. Lembro-me de um texto bíblico: “Graças te dou, visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste...” (Salmos 139.14).

Recordo-me de Graça Proença[1], que ao falar sobre a arte, afirma: “o ser humano, seja de que época for, cria objetos não apenas para se servir deles, mas também para expressar seus sentimentos diante da vida”. Assim, viver em um mundo de estruturas e construções tão variadas nos faz enxergar uma outra faceta da vida – a diversidade!

Sentimentos, ornamentos, pensamentos, cimento, direcionamento, pertencimento, apagamento, reavivamento, adormecimento... tantas são as variantes e possibilidades. Tantas são as percepções...

Dessa forma me lembro de Madonna, que no meio do show realizado em Copacabana, diz: No fear!!! Daquele post do Insta: “A felicidade está na jornada, não no destino”...

Volto-me à foto. Percebo agora que os caminhos também são variados: para cima, reto, à direita ou à esquerda, para baixo... escolhas, decisões, incertezas, certezas, e a vida segue para ser vivida, experimentada, errada, acertada, julgada, avacalhada, estúpida e louca, linda e insana, quadrada e regrada. Pois ninguém é uma coisa só, mas várias e ao mesmo tempo.

Somos espaços construídos de histórias próprias que se constituem por meio de pedacinhos de todos aqueles que encontramos durante a jornada, durante o caminho. Somos a junção do todo, de tudo o que sabemos e temos consciência, e de tudo o que não sabemos. Algumas pessoas chamam tudo isso de Mistério da Vida! Maravilhoso, não?

Curvas, retas e semirretas, pois nos labirintos da vida o importante é o caminho percorrido, porque ele nos indica nossos estágios, nossos progressos e “desprogressos”, nossas verdades e falsidades, nossas forças, debilidades e as possibilidades de sermos aquela pessoa que queremos ser!

[1] PROENÇA, Graça. História da arte. 17ª edição. São Paulo: Ática, 2012, p. 6.

 

Por Aline Taconeli

Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).[1]


Muito se escuta no mundo acadêmico sobre a máxima de que, para que uma pesquisa seja validada cientificamente, é preciso, obrigatoriamente, apagar qualquer rastro da subjetividade do/a pesquisador/a. Contrapõe-se à subjetividade uma objetividade que se pretende crua, pura, higiênica, estéril, que garanta uma oposição palpável entre senso comum e conhecimento científico. Porém, mais contemporaneamente, essa ideia tem sido questionada, sobretudo em pesquisas de campo dentro de áreas do conhecimento das Ciências Humanas e Sociais e, especialmente, pesquisas que se debruçam sobre temas “humanos”, sobre as “subjetividades”, objeto de estudo privilegiado da Psicologia, em especial da Psicologia Social, que aqui tomo como exemplo para sustentar o que passo a argumentar. Uma questão se coloca de saída: é possível apagar os rastros do humano, que no encontro com outro(s) humano(s), encontra também um interesse legítimo de produzir, coletivamente, um conhecimento relevante para o campo científico?

Partindo do exemplo prático da realização de uma pesquisa multimetodológica (bibliográfica, documental e de campo), situada dentro do arcabouço teórico-metodológico da Psicologia Social para a responder a essa questão, surgiu o desafio de escolher qual seria a melhor forma de se aproximar do campo e de produzir os resultados “cientificamente válidos”. Sim, é isso mesmo: “produzir resultados”, sempre coletivamente, ideia que se difere radicalmente da expressão “coleta de dados”, que parece algo como se o/a pesquisador/a chegasse no campo e colocasse em seu alforje os dados que fosse encontrando pelo caminho.

Cabe indicar que a Psicologia Social, enquanto área de conhecimento, tem em sua constituição a interdisciplinaridade, e, por conta disso, nós pesquisadores/as psicólogos/as sociais costumamos fazer uso de metodologias trazidas de outros campos das ciências humanas, tais como a Antropologia e a Sociologia. Estamos convencidos/as de que metodologias como a etnografia, a pesquisa participante e, especialmente a cartografia que aqui apresento, confluem como métodos que dialogam em meio a formas de pesquisar no cotidiano, como vertentes dentro do viés da pesquisa qualitativa ética e engajada com o compromisso de produção de um conhecimento que contribua, de forma minimamente pertinente, para as pesquisas em humanidades, mais especialmente em Psicologia Social. Além disso, esses métodos se alinham como uma forma de pesquisar que é plural, polifônica, polissêmica e contra-hegemônica, produzindo conhecimento que seja como resistência aos poderes majoritários.

É preciso, porém, que o/a leitor/a esteja avisado: isso não quer dizer que se prescinde do rigor teórico-metodológico. Para que seja possível pesquisar “subjetividades” de modo mais próximo possível do sujeito, e não a partir de um olhar tecnicista exterior, rechaçando a pecha positivista dicotômica de sujeito-objeto e de que nós acadêmicos/as seríamos os conhecedores e detentores de verdades e postulados absolutos sobre os sujeitos, é preciso que se percorram diversos caminhos epistemológicos, conceituais e também práticos. Pensando no método cartográfico, a preocupação com o rigor do aparato conceitual não deve conduzir aos paradigmas positivistas de pesquisa que acabam por levar a aplicações herméticas de metodologias que se apresentam como dogmáticas. “A cartografia exige rigor e, no caso, não se trata somente da sustentação da singularidade e da invenção, mas também o uso dos conceitos incorporados à processualidade da pesquisa, sustentando a pressão exercida pelo plano de forças no território acadêmico” (Romagnoli, 2009, p. 47). Citando Deleuze e Parnet (1998), Romagnoli (2009) indica que os conceitos são como sons, cores e imagens com intensidades que se apresentam pela escolha de seu uso.

A força dos conceitos localiza-se fora deles, em sua potência de criar, em sua capacidade de associar ideias, incitar pensamentos, leituras, de entrecruzar linhas e pontos temporariamente arranjados, para mais adiante serem desconectados ou reconectados em outra composição. Os conceitos sempre possuem um compromisso com o campo problemático que lhes dá sentido, gerando uma consistência que unifica traços intensivos, promovendo formas de expressão, e não devem ser desconsiderados [...] (Romagnoli, 2009, p. 47, grifo meu).

Não existe um método rígido e fechado de praticar a cartografia e, portanto, autores/as que trabalham com ela indicam que “existem tantas cartografias possíveis quanto campos a serem cartografados, o que coloca a necessidade de uma proposição metodológica estratégica em relação a cada situação ou contexto a ser analisado” (Prado Filho & Teti, 2013, p. 46). São pistas e não regras (Passos et al., 2020). De forma singular e correlativa, trata-se de uma metodologia que conduz a uma estratégia flexível de análise crítica e não a um conjunto de regras e procedimentos prefixados que se liga a diversos campos de conhecimento das ciências sociais e humanas.

Vertentes da pesquisa qualitativa, participante e dialógica – como a história oral, a etnografia ou a cartografia – têm produzido conhecimento relevante para as ciências humanas e sociais, abrigando e apresentando visões contra hegemônicas de fenômenos humanos, capturados por consensos acadêmicos que participam de circuitos de representações simplificadoras e generalizantes (Cabral et al., 2019, p. 13).

A cartografia não se aplica, a cartografia se pratica (Passos et al., 2020). E como prática ela é viva, produzindo-se no processo de construção da pesquisa, metamorfoseando-se nos encontros e desencontros da convivência em campo e, inclusive, na construção da fundamentação teórica da pesquisa. A cartografia se produz na configuração de um mapa que pode ter muitos modelos e perspectivas distintas, seguindo as pistas e os rastros que podem nos levar aos mais distintos lugares.  “Eis, então, o sentido da cartografia: acompanhamento de percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas” (Passos et al., 2020, p. 10).

O método da cartografia busca, stricto sensu, uma reversão metodológica de uma concepção metodológica tradicional, que se apresenta com regras previamente estabelecidas. Tal sentido tradicional encontra-se explícito na própria etimologia da palavra método: metá-hodós. Conforme apontam Passos et al. (2020), tradicionalmente a metodologia que direciona a pesquisa é definida como um caminho (hodós) predeterminado pelas metas de partida. Por outro lado, a cartografia transmuta a metodologia em hodós-metá, em uma aposta de uma experimentação do pensamento não como um método a ser aplicado, mas como um percurso a ser experimentado e compreendido como uma atitude. Com isso não se renuncia ao rigor, mas ele é ressignificado, uma vez que “a precisão não é tomada como exatidão, mas como compromisso e interesse, como implicação na realidade, como intervenção” (p. 11).

Em uma proposta de definição em caráter de construção inacabada da compreensão desse método de cartografar, posso reiterar, seguindo as pistas dadas por Passos et al. (2020), que a cartografia é um método de pesquisa-intervenção que se propõe a acompanhar processos, habitando um território existencial, por meio da experiência do ato de pesquisar. A cartografia usa como base o conceito de dispositivo (a partir de Foucault e Deleuze) e de rizoma (Deleuze e Guattari). Como tal, recusa-se aos pressupostos positivistas de obtenção e análise dos dados e à distinção entre sujeito e objeto da pesquisa. Tem como resultado a produção do relato da experiência da pesquisa, em uma escrita que se apresenta com um caráter de narratividade que é sempre coletiva, a partir de uma “irredutível atenção aos movimentos da subjetividade e da paisagem existencial, suas pontas de presente, seus fios soltos, suas linhas de fuga em relação à estratificação histórica” (Passos et al., 2020, p.  203). Nesse sentido, a cartografia aponta e produz lugares outros e subjetividades outras.

A cartografia coloca-se o desafio de conduzir a heterotopias: espaços outros, novos mundos, novas paisagens, novas relações, também novas formas de existência e de subjetividade, novos modos de relação do sujeito consigo mesmo que possibilitem exercício de liberdade – não liberdade como ideal abstrato, posto a priori, mas como prática concreta, como linha de fuga. A estratégia cartográfica permite escapar ao decalque, à cópia, à reprodução e à repetição de si mesmo, tornando possível a singularização, a produção de si mesmo a partir de novas estéticas da existência (Prado Filho & Teti, 2013, p. 57).

Dessa forma, posso afirmar que meu intuito enquanto pesquisadora psicóloga social indo a campo e produzindo o resultado de uma pesquisa no cotidiano, estabelecendo organicamente relações afetivas, já é em si, uma prática de resistência que dá notícias de uma nova estética de (co)existência(s). A confiança, a convivência e, podemos dizer, a amizade estabelecidas são pontos principais sem os quais a pesquisa não poderia ter sido realizada. A autoria do texto final é atribuída formalmente à pesquisadora, porém com diversas vozes ressonantes.

Além disso, a “subjetividade” sobre a qual se buscou falar, é ela em si mesma e somente possível de ser pensada assim, intersubjetiva, dialógica e polifônica como o é a própria existência, para além de toda e qualquer pesquisa. A questão da pesquisa sobre a subjetividade não cessa de se realizar, jamais estancando-se em uma resposta hermética e universalizada. O problema está sempre em movimento e em construção, sem perspectiva de uma resposta final e acabada. “Analisar é, assim, um procedimento de multiplicação de sentidos e inaugurador de novos problemas” (Barros & Barros, 2013, p. 375).

Nesse jeito de pesquisar, contra-hegemônico, plural, polifônico, de resistência, de aposta, humano, demasiadamente humano, não se busca apagar os rastros e vestígios da humanidade do/a pesquisador/a. Mas, sim, partindo deles, seguir outros rastros humanos, deixando e imprimindo outros próprios rastros, no cotidiano, com os caminhantes, afetando e deixando-se afetar pelos encontros e desencontros de pesquisar (com) humanidade(s).

 

Referências

Barros, L. M. R. D., & Barros, M. E. B. D. (2013). O problema da análise em pesquisa cartográfica. Fractal: Revista de Psicologia, 25, 373-390.

Cabral B. E. B; Szymansky, L.; Moreira, M. I. B; Schmidt, M. L. S.(org.) (2019). Práticas em pesquisa e pesquisa como prática: experimentações em psicologia. Curitiba: CRV.

Deleuze, G. & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta.

Passos, E.; Kastrup, V.; Escóssia, L. da (org.). (2020). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina.

Prado Filho, K., & Teti, M. M. (2013). A cartografia como método para as ciências humanas e sociais. Barbarói, 38, 45-49.

Romagnoli, R. C. (2009). A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicologia & sociedade, 21, 166-173.

Taconeli, A. S. (2023). Economia solidária, saúde mental e subjetividades: governamentalidade e resistência em um programa de geração de renda no município de Santo André, SP. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023. doi: 10.11606/T.47.2023.tde-07122023-103322. Acesso em 23 de abril de 2024.

[1] Texto produzido a partir da experiência de pesquisa que culminou na tese intitulada “Economia solidária, saúde mental e subjetividades: governamentalidade e resistência em um programa de geração de renda no município de Santo André, SP”, da mesma autora. Disponível na íntegra em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-07122023-103322/pt-br.php, acesso em 23 de abril de 2024.

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